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A vida de quem morre no trânsito vale menos que a liberdade de quem mata?


Por Marcia Pontes, colunista do Notícias Vale do Itajaí

A vida e a liberdade são os balizadores mais importantes, mais significativos, de todo o arcabouço jurídico brasileiro. A Constituição Federal a concebe a vida como o bem jurídico maior a ser tutelado, pilar que norteia os demais códigos e diplomas legais. O Código de Trânsito dispõe que o trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito. Inclusive, respondem, no âmbito das respectivas competências, objetivamente, por danos causados aos cidadãos em virtude de ação, omissão ou erro na execução e manutenção de programas, projetos e serviços que garantam o exercício do direito do trânsito seguro. Mas, depois que a vida é roubada, ceifada por motoristas que provocaram acidentes de trânsito (inclusive embriagados), depois que a vida não existe mais, ela perde o valor?  Quem morre no trânsito têm o bem jurídico maior violado enquanto quem mata têm a liberdade garantida?

O fato é que no papel o discurso constitucional parece perfeito, mas na hora de colocar em prática a realidade fica bem distante. Desde quando entrou em vigor em 1998 o Código de Trânsito Brasileiro já passou por 34 remendos em uma colcha de retalhos que promete ficar bem maior do que a cama e que mexe com a parte penal.  Isso é perigoso porque nenhum desses remendos proporcionou à sociedade, às vítimas sobreviventes e aos seus familiares a justiça tão clamada e tão esperada há anos por quem perdeu alguém no trânsito. Isso nos faz questionar qual o valor da vida na via.

Muitos dos Centros de Detenção Provisória (CDP) e presídios estão lotados por acusados de roubo, latrocínio, estupro, tráfico de drogas, feminicídio, homicídios de todos os tipos e armas utilizadas, menos por homicidas do trânsito. Será que a vida que foi tirada no trânsito tem menos valor do que a vida que foi tirada por faca, marreta, tijolo, pelas próprias mãos ou por arma de fogo?  Pasmem, aos olhos da legislação existe diferença, e uma diferença que costuma deixar em liberdade quem comete infração, bebe, dirige e mata no trânsito.

Isso explica a soltura do condutor acusado em audiência de custódia e substituição por medidas cautelares, tais como: não sair à noite entre 22h e 6h, proibição de ir a bares e restaurantes, suspensão do direito de dirigir, dentre outras. Mas, aos olhos das famílias das vítimas, dos pais, mães, filhos, irmãos, amigos e outros órfãos a leitura que se faz é: o motorista bebeu, dirigiu, assumiu o risco de matar, matou e está solto. Se o bem maior da vítima que era a vida foi violado, a liberdade (que é o bem maior de quem mata) fica preservado? Onde há justiça nisso?

Os familiares é quem cumprem a verdadeira pena

O crime mais grave considerado em todo o arcabouço jurídico é o crime contra a vida. Fere direitos fundamentais consagrados em tratados internacionais e uma das formas de punir é a privação da liberdade: violou direito fundamental à vida terá o direito fundamental à liberdade privado. Só que em crimes de trânsito quem verdadeiramente paga a pena são as famílias. Uma pena que começa a ser cumprida com aquele telefonema de emergência na madrugada; a busca por informações no hospital; com a notícia de que infelizmente não resistiu à gravidade dos ferimentos, ou que morreu durante a cirurgia.

Um dos momentos mais dolorosos é a hora de ir ao IML reconhecer o corpo logo após a colisão, ou mesmo saber da gravidade do caso e das mortes por vídeos e fotos em busca de likes e compartilhamentos em redes sociais. Um pai, uma mãe, um irmão, filho, esposa ou marido morre duas vezes nessas horas diante do corpo machucado, violado, humilhado, vilipendiado e exposto na agonia da dor e da morte em redes sociais sem a menor compaixão e respeito.

Pior mesmo – e não têm palavras que possam descrever esse sentimento – é quando os familiares encontram o motorista assassino que matou embriagado em uma roda de bar ou lanchonete, sorrindo, feliz, de copo cheio ao lado da chave do veículo sabendo que a mesma tragédia anunciada movida a bebida x direção poderá se repetir. E muitas vezes se repete.

Não queiram saber o tamanho da dor da dona Marlisa quando o netinho Lucas, com menos de 2 anos, chorava, não dormia, ficava inquieto procurando e chamando a mamãe e o papai pelos cantos da casa com saudades, sentindo falta deles. O pai e a mãe do Lucas foram assassinados por um condutor embriagado que passou o dia bebendo às margens da BR-470. O bebê foi salvo porque estava na cadeirinha, vai fazer 5 anos e até hoje não entende porque o papai e a mamãe nunca mais vão voltar. O motorista que matou? Livre, leve e solto.

Não queiram sentir o que sentiu o pai do Paulo André quando ficou cara a cara com o motorista que dirigia embriagado, perdeu o controle do veículo e matou o ciclista que pedalava pelo acostamento. Ele deu de cara com o assassino do filho estacionando o carro e se dirigindo a uma lanchonete onde amigos o aguardavam com as cervejas já na mesa. É de matar por dentro novamente.

Nunca saberemos até que eles, os que mataram, nos contem o que sentem: se lembram-se das vidas que ceifaram, se não lembram, se estão arrependidos, se estão se afundando em uma depressão profunda e na dependência de ansiolíticos e antidepressivos ou se apenas continuam vivendo, bebendo, dirigindo e colocando outras vidas em risco.

 O fato é que para quem perdeu alguém no trânsito a vida dos que se foram vale muito, mas ver quem matou embriagado no trânsito premiado com a liberdade é uma afronta, é um desrespeito, uma espera por justiça que nunca tem fim assim como a dor da perda que faz sentirem-se os únicos apenados.

No mundo jurídico brasileiro em que o Direito Penal é a última ratio, a última instância e que a liberdade parece valer mais do que a vida (ambos são direitos fundamentais), a doutrina ainda vive da fantasia constitucional de que o salário mínimo seja suficiente e capaz de atender a necessidades vitais básicas do cidadão e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo.

Doutrina e realidade que se distanciam também na fantasia de que os governos tenham capacidade de proporcionar educação e saúde de uma qualidade tamanha que reduza ou elimine as gravíssimas mazelas e a violência social que faz as pessoas transgredirem e matarem. E assim, com o sistema prisional em colapso e em que os presos são soltos por falta de vagas a sociedade fica se perguntando se haveria presídio que chegue para todos os que matam embriagados no trânsito.

Fica até difícil falar e acreditar em educação para o trânsito que ressocialize e regenere os infratores se ainda não se sabe como “educar” motoristas com 100, 200, 300 ou mais pontos no prontuário de condutor. Fica difícil num país em que a segurança no trânsito não é levada a sério e tudo vira cantilena de indústria da multa ou de que “é tudo para arrecadar”.

E assim, há familiares de vítimas que já morreram esperando por justiça. Há familiares vivos que também perderam a alegria de viver porque parte de tudo que foram e que são também foi sepultada junto com a vítima que foi morta caminhando na calçada, parada em frente ao portão ou dirigindo sóbria ou praticando direção defensiva.

Mazelas sociais muito difíceis de serem eliminadas à parte, o sentimento das vítimas sobreviventes, das famílias e da sociedade é de impunidade, manto no qual se amparam os que bebem, dirigem e matam no trânsito. Poucos são os que têm uma ressaca longa atrás das grades por um bom tempo.

Se vida e liberdade são direitos fundamentais que devem ser protegidos, sempre continuará existindo um abismo entre eles nos crimes de trânsito que resultam em morte. Vem de um comentário nas redes sociais o que exemplifica essa desigualdade:

“Lá na cadeia a família pode ir visitar ele. Abraçar e ficar umas horas na cela com ele. Enquanto as famílias das vítimas nunca mais poderão abraçar e sentir o calor de um abraço.”

Marily Deschamps, deixa eu te parafrasear: por mais que seja triste para a família de quem matou no trânsito, é muito provável que esse motorista esteja em liberdade em pouco tempo. E ainda que reste preso essa pessoa teve o seu bem maior (a vida) preservado: poderá se sentir apoiado, amparado, amado, poderá abraçar as pessoas que ama. Poderá até usar de forma útil o tempo que tem atrás das grades para repensar a besteira que fez e tentar recomeçar a vida de cara limpa para nunca mais beber, dirigir e matar inocentes.

Nós, os familiares de vítimas mortas no trânsito, nunca mais poderemos ver os nossos amados que eles mataram. Não poderemos mais abraçar, beijar, ouvir a voz, ver realizar os sonhos ou envelhecer ao lado deles. O lugar na mesa ficará vazio para sempre. Alguns de nós caminharão pela vida apenas com a fé e a esperança na justiça. Aplacaremos a saudade diante de uma lápide fria e talvez coloquemos nela flores que os nossos amados gostavam e nunca mais poderão cheirar.

Não ouviremos mais a voz deles, o riso deles, não sentiremos mais o calor do abraço deles. Punição dura, exemplar, prisão por um bom tempo não traz a vida de nossos amados de volta, mas ajuda a seguir em frente com alguma esperança na justiça dos homens sempre tão preocupados em defender a vida, mas sem a mesma energia de punir quem a viola, fere, rouba e ceifa. Principalmente quando se trata de homicídios de trânsito envolvendo motoristas que dirigiram alcoolizados.

Vida e liberdade são direitos fundamentais, mas nenhum outro deveria ser maior do que a vida.

A Constituição defende a vida e em nome dela tem esculpido os balizadores dos direitos fundamentais da pessoa humana, mas o que mais parece, na prática, é que a vida não vale nada no trânsito. E ai de você se tiver o “azar” de cruzar com um cidadão de bem embriagado que lhe ceifar a sua vida e a dos outros. Quem vai pagar essa conta será você, a sua família, os seus amigos e a sociedade hipócrita em que você vive.  

Márcia Pontes
Especialista em Trânsito

Representante do Maio Amarelo em Santa Catarina

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