A ilha de Veneza que ensinou sobre a importância da quarentena
da ANSA
Por Lucas Rizzi – Uma pequena ilha desabitada e situada na Lagoa de Veneza, norte da Itália, se tornou símbolo do pioneirismo da cidade no combate a doenças infecciosas e assentou as bases para o uso da quarentena como principal arma contra enfermidades sem cura.
Com quase 5 milhões de pessoas infectadas e mais de 300 mil mortos, a pandemia do novo coronavírus forçou governos a imporem medidas de isolamento a mais da metade da população do planeta. Sem vacina ou tratamentos com eficácia comprovada, a quarentena ainda é a melhor forma de frear a Covid-19.
No entanto, 600 anos antes, a então República de Veneza já havia entendido que, contra doenças sem cura, resta o distanciamento para evitar a disseminação. Era o ano de 1423 quando a “Sereníssima” decidiu instituir na ilha de Santa Maria di Nazareth o primeiro hospital na história dedicado ao isolamento de vítimas da peste, a doença bacteriana que dizimou dezenas de milhões de pessoas na Europa em diversos surtos ao longo dos séculos.
Conhecida hoje como Lazzaretto Vecchio, ou Lazareto Antigo, na tradução para o português, a ilha foi determinante na estratégia de Veneza para controlar a difusão da peste entre seus cidadãos.
Em entrevista à ANSA, Francesca Malagnini, professora de história da língua italiana na Universidade para Estrangeiros de Perúgia e autora de um livro sobre as escrituras epigráficas do Lazzaretto Vecchio, conta que o hospital surgiu em um contexto em que a peste havia se tornado endêmica, ao mesmo tempo em que a economia de Veneza era baseada principalmente no comércio.
Além disso, a cidade servia de parada a peregrinos que seguiam para a Terra Santa, no Oriente Médio. “Veneza importava especiarias e mercadorias e as revendia e distribuía por toda a Europa. E essas caravanas ao Oriente ou os peregrinos que iam a Jerusalém frequentemente voltavam com a peste incubada, e as mercadorias estavam, por sua vez, infectadas”, diz a professora.
Naquela altura, Veneza já havia instituído uma magistratura sanitária com amplos poderes executivos, inclusive para colocar pessoas e mercadorias em isolamento quando as excursões retornavam do Oriente.
A cidade croata de Dubrovnik (então República de Ragusa) fizera uma tentativa de isolar viajantes no século 14, mas, segundo Malagnini, Veneza foi a primeira no mundo a sistematizar os procedimentos de quarentena, que, já naquela época, não durava necessariamente 40 dias.
Em 1468, a República veneziana ainda criaria um segundo lazareto: enquanto o Vecchio era voltado ao cuidado e isolamento de pacientes da peste e de outras doenças infecciosas, o Lazzaretto Nuovo se destinava à quarentena de navios que chegavam de outros portos do Mediterrâneo.
Isolamento
De acordo com a pesquisadora Lara Meneghini, do Archeoclub de Veneza, entidade responsável pela gestão do Lazzaretto Vecchio, pessoas que violassem a proibição de entrar nas duas ilhas arriscavam até ser condenadas à morte.
No Lazzaretto Nuovo, havia inclusive uma forca pendurada na parte externa dos muros para dissuadir transgressores. “Havia regras muito severas, era fundamental não colocar em risco a saúde pública da cidade”, conta Meneghini. O lazareto antigo, no entanto, não fazia distinção de classe para combater a peste.
“Não há nada mais democrático do que uma doença. Era um risco deixar na cidade quem tinha os sintomas”, diz a pesquisadora. Para não se infectar, os médicos vestiam luvas, máscaras e túnicas de algodão grosso que chegavam até os pés.
O prédio também prezava pela beleza, com estátuas de mármore e latrinas de pedra da Ístria nos quartos – um luxo para a época. “Uma sociedade deve tratar bem os doentes, não apenas curá-los. Eles devem estar em um lugar que seja belo, fresco, e o Lazzaretto Vecchio era exatamente isso. Apesar de estarmos no século 15 e em um hospital, a República investia e tentava fazer o seu melhor”, diz a professora Malagnini.
Veneza também contava com uma rede de embaixadores que buscavam informações sobre eventuais focos de contágio dentro e fora da República. Identificar e isolar, assim como acontece hoje na pandemia do novo coronavírus.
Coincidência ou não, a região do Vêneto, onde fica Veneza, se tornou exemplo bem-sucedido de combate à Covid-19 ao conter rapidamente um dos primeiros focos de contágio na Itália, a pequena cidade de Vo’, com uma estratégia de isolamento rígido e testagem em massa ainda antes da quarentena nacional.
“Acho que temos um pouco desse hábito no DNA. Para mim foi natural, eu entrei em quarentena antes mesmo da quarentena oficial. Quando não há cura, a saída é ficar escondido em casa”, diz Malagnini.
Mas Veneza também caiu na tentação de ceder em algum momento. Em 1630, um embaixador de Mântua chegou na cidade se sentindo mal e, em vez do Lazzaretto Vecchio, ficou isolado em um palácio privado, onde manteve contato com funcionários. “Dali partiram os primeiros contágios, e depois a peste chegou na cidade. Como se vê, as exceções custam caro”, afirma Meneghini.
O surto iniciado naquele ano foi um dos mais mortais na história de Veneza, com dezenas de milhares de vítimas.
Palavras
Incorporada ao vocábulo de diversos idiomas, a palavra lazareto designa hospitais para portadores de doenças contagiosas e provavelmente surgiu, segundo Malagnini, de uma sobreposição entre “Nazaretta”, nome da igreja que havia na ilha de Santa Maria di Nazareth, e “San Lazzaro” (São Lázaro), nome de uma ilha vizinha.
Já a relação de Veneza com o termo quarentena é mais nebulosa. A palavra, de acordo com a professora, possui origem bíblica – o dilúvio tem 40 dias – e significa um período longo de tempo de restabelecimento. Em veneziano, no entanto, ela dificilmente era usada, e a preferência era pelo termo “contumacia”, que tinha o mesmo significado.
Em determinado momento, a palavra “quarentena” deve ter se sobreposto na República, que ajudou a difundi-la graças a seu poderio. “Veneza possuía uma grande autoridade, uma magistratura que se ocupava da saúde e tinha grande poder”, explica a professora.
Visitas
Desativado como hospital desde o século 19, o Lazzaretto Vecchio é hoje fechado ao público, a não ser em algumas aberturas extraordinárias promovidas pelo Archeoclub de Veneza.
Mas está em curso um projeto para montar um museu municipal na antiga ilha, contando não apenas sua história como primeiro local para internação de doentes da peste, mas também da própria cidade de Veneza.
Já o Lazzaretto Nuovo é aberto para visitas guiadas, com a exceção óbvia deste momento de pandemia.
Foto: Archivio Magistrato alle Acque di Venezia