Um olhar técnico para a Serra da Vila (SC-108)
Por Marcia Pontes, colunista do Notícias Vale do Itajaí:
A morte das irmãs Dorly e Doroty (Dora, fez aniversário em 31 de maio) no dia 2 de junho próximo ao Km 61 da SC-108 foi um golpe duro no coração dos moradores da Vila Itoupava e que reacendeu um problema antigo: a acidentalidade recorrente no trecho conhecido como a Serra da Vila. O perigo mora ali 24 horas, mas as reações têm sido cíclicas: durante um período pós-acidente volta-se a fazer pressão em cima dos políticos e dos gestores do Deinfra; passa um tempo e a sociedade volta a contar a acidentalidade e os mortos sem ver algo de concreto. Lideranças entre a comunidade da Vila Itoupava organizaram um protesto para o dia 8 de junho, às 18h, com a intenção de chamar à atenção e exigir melhorias na via. Entre tudo que se ouviu e leu de opiniões essa semana (menos a de engenheiros de tráfego) desde que a rodovia não mata ninguém até a demonização do comportamento do motorista que abusa da velocidade, vamos lançar um olhar técnico sobre a questão enquanto o pedido de informações técnicas ao Deinfra não chega.
Para este ainda post não tenho a informação de quando foi inaugurada a SC-413, que em 2007 passou a ter a denominação de SC-108, mas crê-se que lá se vão algumas décadas, o suficiente para que o projeto original tivesse levado em conta outros elementos em relação à densidade da via, à velocidade de projeto e velocidade operacional, bem como o seu traçado, geometria, volume e tipo de frota usuária. Rodovia estadual importante, a SC-108 liga vários municípios catarinenses (Massaranduba, Guaramirim, Navegantes, Luiz Alves, Joinville e Jaraguá do Sul) e tem alguns trechos descontínuos. No Vale do Itajaí o trecho compreendido entre o Km 60 em toda a sua extensão é um dos pontos críticos de acidentes e mortes pelo que se registra nas reportagens de acidentes.
O fato é que todo acidente de trânsito não tem uma causa só: ele tem concausas, uma somatória de fatores que influenciam o modo como os motoristas dirigem, conhecem os riscos, os aceitam, os extrapolam ou os evitam. Todo acidente de trânsito envolve 4 fatores importantes: o homem, o veículo, a via e o ambiente.
Nas questões relacionadas ao homem sobressai o comportamento ao dirigir, dentre eles, a distração e a velocidade, mas seria, no mínimo, precipitado e imaturo afirmar sem evidências técnicas que todo mundo que se acidenta ou morre na Serra da Vila Itoupava colheu o fruto do que plantou. O outro fator ligado ao veículo diz respeito à máquina, ao estado de conservação, às possíveis falhas que podem ocorrer enquanto está guiando. Os fatores ligados à via influenciam muito no amplo leque técnico de variáveis da Engenharia de Tráfego, indo para além da existência de água ou óleo na pista. O ambiente está ligado às causas climáticas e ao próprio meio (festas, feriado, congestionamentos, pista livre, local conhecido ou próximo de casa).
Há estudo técnico dos pontos críticos de acidentalidade?
O que é necessário saber dos gestores do Deinfra é que tipo de tratamento se está dando às crescentes ocorrências de acidentalidade na SC-108. Do ponto de vista técnico, se há um estudo da acidentalidade nesta rodovia com identificação e mapeamento dos pontos negros, a identificação da metragem da ocorrência e o principal tipo de acidente para cada quilômetro do trecho. Os pontos brancos de uma rodovia do ponto de vista da Acidentologia Viária são aqueles em que há menos ocorrências e acidentes. A questão não é se há relatórios estatísticos, e sim, que tipo de intervenção técnica se pode fazer a partir deles.
O que fica escondido por trás dos juízos de valor em cada comentário e das “certezas” ditas sem a propriedade de engenheiros e outros técnicos de tráfego é que é necessário um estudo de traçado, de densidade viária, trabalhando-se com a velocidade de projeto original e comparando-se com a velocidade operacional. É preciso considerar a composição do tráfego por tipo de veículo desde a inauguração dessa rodovia até os dias atuais, bem como as projeções antigas de densidade da via e de como é hoje.
É preciso se trabalhar com uma equipe técnica multidisciplinar não só para vistoriar o local corretivamente, depois que o acidente foi provocado, mas para se fazer auditorias de segurança com caráter preventivo e estudos técnicos detalhados que apontem para soluções. E para quem pensa que só a velocidade empregada pelo motorista conta, existem as velocidades de projeto que impactam o pavimento. Bom asfalto não significa que não haja problemas estruturais.
Já ouviram falar em “curva que joga prá fora”? Tecnicamente, é onde sopesa mais a ação da Física por meio da força centrífuga. Se esses pontos não estão reconhecidos na via e a sinalização existente não é correta, isso é fator que concorre para o acidente. Por isso, é que as curvas “pesam” em relação aos critérios de segurança.
A inclinação, subida ou rampa vertical exerce maior influência sobre a velocidade operacional para o trecho, o que exige estudos com pontos de medição de velocidades regulamentadas e praticadas nos locais com grande frequência de acidentes, com combinações de diferentes raios de curvaturas horizontais e rampas de perfil vertical.
A partir dos dados de velocidade de projeto da via, dados de superelevação, raio de curvatura horizontal e velocidade operacional calcula-se o fator de atrito lateral assumido e demandado para cada curva. Isso também serve para identificar as inconsistências nas tangentes, que pode levar a uma mudança na sinalização no local. Não podemos esquecer que as velocidades praticadas pelos motoristas são também em função dos elementos geométricos que compõem a via (raio, rampa, largura da faixa, etc). Muitas falhas de coordenação dos motoristas podem ter origem, também, nos elementos da via.
Há pontos em que, do ponto de vista técnico, seja possível fazer o realinhamento da rodovia SC-108 para eliminar características geométricas inadequadas? A sinalização pode ser revista, melhorada, atualizada em relação ao aumento da densidade de veículos e das características estruturais que já não são as mesmas desde a inauguração da via? Há pontos em que se pode colocar revestimento antiderrapante?
Partindo para o óbvio: a vegetação encobre as placas verticais existentes em retas e curvas? E as condições de iluminação? Existe a possibilidade de implantação de sinalização horizontal não convencional, através de pinturas de mensagens de advertência em locais com condições precárias de geometria e de visibilidade com sonorizadores associados à sinalização de advertência? Há, ainda, a possibilidade de se identificar a necessidade de delineadores, áreas nos acostamentos para conversões em interseções, recapeamento em alguns trechos com maior rugosidade, tachas refletivas para a delineação de curvas mais acentuadas, balizadores refletivos nas defensas ou guarda-corpos e correção de drenagem superficial, de forma a evitar o excesso de água na pista, dependendo do caso tecnicamente identificado.
Conhecer os trechos concentradores de acidentes na SC-108 pelo tipo de acidente, severidade, em auditorias e vistorias sistemáticas de campo é fundamental. Ter uma equipe multidisciplinar formada por engenheiros de tráfego, peritos em acidentologia, psicólogos de trânsito e especialistas com foco na educação para o trânsito é uma forma de se aliar os elementos de engenharia, de fiscalização e de educação pela mobilização das comunidades lindeiras à SC-108. Isso é importante porque o motorista local tende a dirigir com mais confiança, por acreditar que já conhece a sinalização olha menos para as placas, conhece mais os perigos não sinalizados e são os que mais ficam vulneráveis a possíveis surpresas. Estudos científicos demonstram que a maior parte dos acidentes é nos trechos próximos de casa, por ser um local conhecido, em que o motorista relaxa mais na sua segurança. Se esse é um ponto crítico, o risco potencial aumenta.
A velocidade, a distração, a pressa, o dirigir cansado, emocionalmente abalado, tudo isso afeta o modo como o motorista dirige. Mas, as condições de sinalização e de características de engenharia de uma via, ainda que de bom asfalto, também pesa muito. Geometria suave ou não, curvas fechadas, falhas de sobrelevação ou sobrelargura, pavimento degradado, derrapante, frequência de óleo na pista, as sujidades dos 15 primeiros minutos de chuva, tudo isso se cruza. São os 4 fatores se combinando: o homem, o veículo, a via e o ambiente.
A sinalização adequada, compatível com as condições do tráfego local, a visibilidade de todos os ângulos e de todas as alturas dos motoristas (motoristas de caminhão e de ônibus têm visão diferente), o estado de conservação das placas e a capacidade de saturação da via também contam. A composição do tráfego está gerando velocidades diferentes para as quais a via foi projetada?
É claro que o cuidado, respeitar a sinalização e, principalmente a velocidade, é fundamental. Mas, um trânsito seguro se faz com medidas de engenharia de tráfego; de fiscalização inclusive de si mesmo enquanto dirige; e com orientação efetiva às comunidades e usuários lindeiros às rodovias. E, neste momento, a população da Vila Itoupava está ansiando por isso.
Se a SC-108 tem ou não problemas estruturais só quem pode avaliar e certificar são os engenheiros de tráfego, o resto é especulação. Se o que matou foi a imprudência, a imperícia, a negligência, o mal súbito ou as falhas mecânicas só os peritos podem atestar a certeza.
A velocidade e as imprudências dos motoristas são coisas que incomodam à todos. Mas, não se pode incorrer no grave erro de demonizar os motoristas que se envolvem em acidentes em uma rodovia com as características técnicas e estruturais da SC-108. Motoristas e gestores do Deinfra têm que fazer a sua parte.
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