Entenda por que quem mata embriagado no trânsito não fica preso
Por Marcia Pontes, colunista do Notícias Vale do Itajaí:
Duas pessoas morrem em uma mesma colisão na BR-470. Um vídeo gravado por um motorista que dirigia atrás do veículo do acusado mostra claramente que o condutor vinha fazendo zigue zague e o momento incontestável em que ele perdeu o controle do veículo, foi para a contramão e bateu de frente com uma motocicleta em que estavam as vítimas. Testemunhas gravaram um vídeo mostrando que o condutor estava com o estado psicomotor alterado, os policiais rodoviários federais constataram isso por meio da combinação de 18 sinais característicos de embriaguez, lavraram o auto correspondente e deram voz de prisão em flagrante. O acusado seguiu direto do local do acidente para a delegacia, só que em menos de 24 horas já estava saindo pela porta da frente enquanto os familiares dos mortos faziam os procedimentos funerários. Muita gente (mais uma vez) não entendeu nada e botou a culpa no juiz. Para explicar o por que desse resultado, vamos esclarecer de forma bem didática as principais dúvidas dos leitores em forma de perguntas e respostas.
Leitor: Porque, apesar de todas as provas (inclusive de vídeo) e do flagrante, o motorista que matou duas pessoas foi solto?
Márcia Pontes: Porque no Brasil a prisão não é a regra, é uma exceção para casos específicos de crimes dolosos (com a intenção ou assumindo o risco de matar) e para crimes hediondos. Homicídio culposo de trânsito (sem intenção de matar) não entra nessa exceção. As leis brasileiras também não preveem prisão preventiva para crimes culposos (só para os crimes com intenção de matar) e o juiz é obrigado a seguir o que diz a lei e a conceder a liberdade provisória para que o acusado responda ao processo em liberdade até a data do julgamento
Leitor: Por que o motorista que invadiu uma creche em Chapecó não matou ninguém e está preso?
Márcia Pontes: Por que ele não foi indiciado pela Lei 13.546/17, mas sim pelo Código Penal pela acusação de dupla tentativa de homicídio por dolo eventual em função das circunstâncias analisadas no caso. O entendimento foi de que esse motorista assumiu o risco de matar e o fato de as vítimas serem crianças criou situações específicas.
Leitor: Ao beber e dirigir o motorista já não está assumindo o risco de matar?
Márcia Pontes: uma das coisas mais difíceis de se provar com toda certeza dentro do processo penal é se uma pessoa agiu com dolo (vontade de matar), dolo eventual (assumiu o risco de matar) ou com culpa (sem a intenção de matar). O que vai diferenciar entre um e outro é a vontade do motorista no momento em que dirigia embriagado ou sob o efeito de drogas. No homicídio doloso o motorista prevê e quer o resultado morte: ele se embriaga determinado a ter coragem para pegar o carro e matar especificamente aquela pessoa ou o primeiro que aparecer pela frente. O objetivo é a morte de alguém. Como provar isso a não ser pela confissão do próprio motorista?
No dolo eventual o motorista bebe, dirige, ele até prevê que pode matar alguém embora não queira, mas assume esse risco. No homicídio culposo, aquele sem intenção de matar, existe ainda duas espécies de culpa: a culpa consciente, quando o motorista até prevê que pode matar alguém, mas ele não quer matar, não assume o risco de matar e pensa que pode evitar porque dirige bem, tem muitos anos de carteira, etc… Na culpa inconsciente o motorista não prevê que pode matar alguém embora o resultado fosse previsível, ele não quer matar e não aceita que poderá matar alguém dirigindo embriagado. É o popular “não vai dar nada”.
Leitor: Mas, o vídeo e as testemunhas e o próprio flagrante não valem de nada?
Márcia Pontes: Valem sim, e inclusive serão anexados ao processo como provas que vão servir para incriminar o acusado. O detalhe é que no nosso país ninguém pode ser considerado culpado até que o juiz profira isso em sentença em julgamento ao final do processo. Por mais que haja provas como essas que foram apresentadas contra ele, a lei dá ao motorista acusado o direito a responder ao processo em liberdade, o direito à ampla defesa, ao contraditório, à produzir de provas a seu favor e a todos os recursos previstos em lei. A prisão em flagrante não é uma forma de punir antecipadamente o acusado: é para garantir que ele não conseguisse fugir do local, não se escondesse, fosse identificado e fornecesse todas as informações de que a polícia precisa para dar início ao processo que vai apurar o crime.
Leitor: Mas, não saiu uma lei que aumentou a pena de 5 a 8 anos de reclusão para quem dirige embriagado e comete homicídio no trânsito?
Márcia Pontes: Essa lei é a 13.546/17 e está em vigor desde o dia 19 de abril de 2018, mas o legislador cometeu um erro grave: mexeu só no Código de Trânsito Brasileiro para aumentar as penas e ignorou que o CTB se conversa com o Código Penal, com o Código de Processo Penal e com outras leis. Essa lei manteve todos os crimes de trânsito envolvendo imperícia, negligência e imprudência como crimes culposos (sem intenção de matar) e não existe no Código Penal ou de Processo Penal a previsão legal de prisão preventiva para crimes culposos. Como o juiz só pode fazer o que alei manda, ele é obrigado a soltar quem comete crimes culposos. Essa pena de 5 a 8 anos o acusado começa a cumprir só ao final do processo se ele for condenado. Antes disso, ele tem o direito à fiança e à liberdade provisória caso se encaixe nos requisitos da lei. Enquanto o processo está correndo o motorista será tratado como acusado e considerado inocente até que se prove o contrário dentro do devido processo legal.
Leitor: Mas, essa lei nova que trata dos crimes de trânsito cometido por motorista embriagado não acabou com a fiança?
Márcia Pontes: Em casos de morte provocada por motorista embriagado ou sob o efeito de drogas, antes a fiança era arbitrada pelo delegado de polícia porque a pena máxima prevista para o homicídio culposo era de 4 anos. Como a pena máxima passou a ser maior (de 5 a 8 anos) quem arbitra a fiança passou a ser o juiz em uma audiência chamada audiência de custódia que deve ser realizada obrigatoriamente em até 24 horas. Se passar desse prazo a prisão em flagrante será considerada ilegal. Só não terá direito à fiança quem é acusado de cometer crime doloso, quem já tiver sido julgado e condenado por outro crime doloso e se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Leitor: Para onde vai o dinheiro da fiança?
Márcia Pontes: A fiança é uma garantia de que o acusado sendo posto em liberdade provisória irá responder à todos os atos do processo e cumprir com as medidas cautelares impostas pelo juiz. Por exemplo, não consumir bebidas alcoólicas, não se ausentar da comarca sem avisar antes, não sair de casa entre as 22h e 6h da manhã do dia seguinte, não dirigir mais ate o final do processo, dentre outras que o juiz poderá aplicar dependendo do caso. A fiança também pode ser paga em pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca e vai para uma conta da Justiça para garantir o pagamento de custas do processo e para indenizar a vítima ou os seus familiares caso o réu seja condenado. Se ao final do processo ele for absolvido irá receber o dinheiro da fiança de volta. Importante comentar que a lei manda que a fiança possa ser concedida com ou sem pagamento. O STF já decidiu que se o preso em flagrante tem direito à fiança, mas se for pobre e não tiver dinheiro para o pagamento deverá ser concedida a liberdade provisória assim mesmo. Para pessoas com mais posses o valor da fiança pode ser aumentado em até mil vezes.
Leitor: Quer dizer que a vida de um inocente morto por um motorista embriagado vale só o valor da fiança?
Márcia Pontes: Na verdade, o valor pago pela fiança não corresponde ao quanto vale aquela vida. Como sabemos, a vida não tem preço nenhum no mundo que pague, nem que no país houvesse prisão perpétua. A fiança é uma espécie de garantia em dinheiro ou outros bens depositados pelo acusado em sinal de que ele comparecerá à todos os atos do processo e sempre que for chamado pelo juiz para prestar contas do que está fazendo: se está empregado, desempregado, se pretende mudar de endereço e se está cumprindo com todas as medidas cautelares que foram impostas pelo juiz. Uma vez aberto o processo o acusado não escapa de responder à ele e de ser julgado. Ele responderá pelo crime que cometeu, mas só que em liberdade.
Leitor: O juiz não poderia ter negado a liberdade provisória para manter esse motorista atrás das grades até o final do processo?
Márcia Pontes: O juiz não tinha e não tem qualquer opção a não ser aplicar o que diz a lei. Se o juiz deixa e conceder a liberdade provisória nos casos em que a lei determina ele passa a responder por isso e poderá ser penalizado. O juiz não decide sozinho: na audiência de custódia estão presentes também o promotor de justiça (que é o fiscal da lei) e o advogado do réu. Se o réu é pobre e não tem dinheiro para pagar advogado o estado vai lhe designar um gratuitamente. O juiz não legisla, ele apenas aplica aquilo que a lei determina.
Leitor: Existe alguma possibilidade desse motorista ser preso até o final do processo?
Márcia Pontes: Se ele cumprir com tudo que assumiu diante do juiz, do promotor e de seu advogado durante a audiência de custódia, não existirá nenhuma possibilidade.
Leitor: Esse motorista será julgado pelo Tribunal do Júri?
Márcia Pontes: O tribunal do Júri só julga os crimes dolosos (com intenção de matar) contra a vida. Após analisar o caso, o Ministério Público encaminhará denúncia do crime ao juiz e poderá denunciar por dolo eventual, ou seja, o motorista assumiu o risco de matar. Daí dependerá do juiz aceitar essa denúncia ou não. Mas, o advogado de defesa ainda poderá recorrer em segundo grau a um tribunal formado por desembargadores para tentar manter a denúncia pela lei 13.546/17 (5 a 8 anos de prisão), que não leva ao Júri por não ser crime doloso ou de dolo eventual. Pelo dolo eventual a pena pode ser de 6 a 20 anos. Se morre mais de uma pessoa no mesmo acidente a pena é maior.
PASSO A PASSO DO QUE ACONTECE COM MOTORISTAS EMBRIAGADOS QUE FEREM OU MATAM NO TRÂNSITO
ETAPAS | PROCEDIMENTOS |
Prisão em flagrante
|
Encaminhado para a delegacia de polícia: família e advogado são avisados imediatamente. O delegado avisa juiz e promotor de justiça. |
Audiência de custódia em até 24 horas |
Estão presentes o juiz, o promotor de justiça, o preso e o advogado do preso em flagrante. O juiz vai decidir de acordo com a lei. |
O juiz arbitra a fiança |
Lesão corporal culposa grave e gravíssima e homicídio culposo de trânsito admitem pagamento de fiança. |
Quando a fiança for concedida |
É concedida a liberdade provisória mediante cumprimento de medidas cautelares e o acusado passa a responder ao processo em liberdade. |
O Ministério Público analisa o caso e oferece a denúncia. |
Se for pela Lei 13.546/17 a pena será de 5 a 8 anos de reclusão.
Se for por dolo eventual a pena poderá ser de 6 a 20 anos de prisão para cada homicídio. |
O juiz analisa com base na lei e aceita ou não a denúncia |
Dolo eventual: vai a júri popular.
Lei 13.546/17: Julgado por juiz de Vara Criminal comum. |
O advogado poderá recorrer ao Tribunal de 2ª instância (desembargadores)
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Possibilidade 1: pode ser mantida a denúncia do Ministério Público por dolo eventual e o acusado vai à júri popular.
Possibilidade 2: os desembargadores decidem que o acusado responderá pela Lei 13.546/17 e o acusado não vai ao tribunal do júri, mas ainda assim será julgado. |
O processo segue com a produção de provas e recursos até a data do julgamento. | O processo costuma ser demorado. |
Se o acusado for condenado pela Lei 13.546/17 |
Poderá ter substituída a pena de prisão por penas privativas de direitos (cestas básicas, pensão à vítima, indenização aos familiares, etc.). |
Márcia Pontes
Especialista em Trânsito
Representante do Maio Amarelo em Santa Catarina
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