O pós-acidente deixa uma legião de destroçados
Por Marcia Pontes, colunista do Notícias Vale do Itajaí
Uma legião de destroçados, seja física, emocional ou psicologicamente. É isso que fica depois que o acidente é provocado. É isso que vejo no dia a dia entre pessoas próximas e outros que, mais distantes, tentam sobreviver ao pós-acidente. É como se o mundo desabasse sobre a sua cabeça e lhe faltasse o chão. Para as vítimas, a morte é a pior das sentenças e a dificuldade em lidar com o fato de que o seu filho, o seu pai, a sua mãe, a sua neta se foi para sempre, na maior parte dos casos, traz a depressão, a insônia e outras doenças psicoemocionais como comorbidades. Quem não pode pagar por atendimento psicológico acaba indo parar nas filas de atendimento do SUS. Para a família de quem se envolveu e provocou as mortes também sobra estilhaços afiados: em um primeiro momento fica difícil entender como isso “aconteceu” por mais evidentes que sejam as circunstâncias e as provas. Por algum motivo que só eles sabem e quase nunca revelam não conseguem encarar as vítimas ou os órfãos que ficaram. É comum baixarem a cabeça, talvez envergonhados, talvez sem saber o que e como dizer alguma coisa sem a sensação de estar perdendo outras coisas.
Essa semana mais uma vez uma pessoa próxima foi vítima de um condutor que tinha ingerido bebida alcoólica. Pensa num motorista responsável que dirige a mais de 30 anos, que nunca se envolveu em acidente de trânsito e nem foi autuado por qualquer infração. Vinha com a filha do supermercado dirigindo na mão de direção dele, na velocidade da via e com os cuidados de sempre sobre os quais sempre gostávamos de conversar. Do outro lado vinha um condutor alcoolizado que invadiu a faixa de tráfego contrária e colidiu de frente. A cena foi assistida por uma plateia de pessoas que estava em uma lanchonete.
Conta o motorista que foi atingido que a última coisa que lembra de ter dito antes da colisão foi: “Meu Deus, o que esse cara está fazendo?” Logo em seguida sentiu o impacto. Parecia que o mundo girava: pessoas se amontoando em volta dos veículos, a tentativa de olhar e sentir partes do corpo para ter ideia da extensão dos ferimentos. Enquanto era feito o atendimento de socorro e de ocorrência de trânsito o outro motorista que provocou a colisão na contramão, em visível estado de embriaguez, recusava-se a fazer o teste de etilômetro. Disse que tinha tomado duas cervejas em outro local de onde saiu após ter feito um lanche.
Foi desse momento em diante, o do pós-colisão, que a vida de uma pessoa sóbria e cuidadosa que sempre respeitou as leis de trânsito mudou: com o impacto da colisão foi causada uma lesão grave no joelho que vai requerer cirurgias. Foi preciso tirar dinheiro de onde não tinha para comprar um par de muletas, extensores para a perna toda para comprimir a lesão com deslocamento de rótula para diminuir as dores até a data da cirurgia. O dono da oficina constatou perda total do veículo e vira e mexe questiona sobre quando a sucata será retirada da oficina, mas o motorista que causou a colisão deu o número de telefone errado e a vítima não consegue contato para certificar de que a outra parte tem seguro ou não.
Com as consequências do ato de um motorista alcoolizado que cruzou o seu caminho vieram outras complicações: não vai poder mais trabalhar por um bom tempo, a preocupação com a cirurgia, com o sustento da família, com uma provável pendenga judicial que se desenha e com as possíveis sequelas. Você começa a conversar com a vítima e os olhos dela se enchem de lágrimas enquanto ele mesmo se pergunta: “por que as pessoas ainda bebem e dirigem? Por que comigo que sempre fiz tudo certinho? É justo eu pagar essa conta?”
No pós-acidente é que se constata quanta gente se machuca por conta da conduta errada de uma só pessoa (ou de mais de uma). O que mais choca e dói é quando inocentes pagam caro e com a própria vida essa conta, o que faz pairar um sentimento de injustiça, de impunidade, de revolta. A dor aumenta com a ausência, com a saudade, com os planos, o compromisso e a própria vida interrompida. Como bem definiu um pai órfão: “eu sou um pai aleijado para o resto da minha vida”.
O momento mais esperado para as famílias é que o acusado se torne réu, mas é desse momento em diante que a legião de estraçalhados aumenta. Do lado de lá e do lado de cá ninguém sai ileso. Para o pai, a mãe, irmãos e familiares das vítimas mortas parece que fica difícil até de respirar, mas ao mesmo tempo não é nada fácil, principalmente para os pais do acusado, tentarem lidar com os estilhaços. É sempre deles, pais e mães (de quem mata e de quem morre) que sempre lembramos porque de alguma forma eles sofrem junto e também pagam a conta.
Processos judiciais que se arrastam por longos anos, cada dia de espera parece um século. Parece tortura lidar com a ausência, com o vazio, com as sequelas incapacitantes e demoradas de curar. Só quem perdeu alguém sabe como é entrar no quarto de quem se foi. Em muitos casos os advogados de defesa dos réus exageram na pantomima e se mostram de uma agressividade que chega a ser desrespeitosa com quem é vítima, isso quando não gritam, fazem caretas, hostilizam e são até irônicos e debochados. Sim, parece mentira, mas isso existe e mesmo que muitos digam que faz parte do jogo gera revolta, mais dor e estraçalha mais ainda, por extensão, a todos nós.
Estamos em época de campanhas em defesa da vida, em que o cenário se farta de pedidos de alerta, de socorro, sobram dicas de segurança e de conduta correta na direção de veículo automotor. Em meio a tantos apelos, a tanta dor exposta, a tanto sofrimento do lado de lá e do lado de cá ainda assistimos diariamente relatos de colisões de todo o tipo e de condutores dirigindo alcoolizados.
Em meio a esse cenário de guerra de todos os lados as pessoas não deveriam esperar que a tragédia bata a sua porta e invada a sua vida para tomarem uma atitude. O pós-acidente não é uma fita de campanha estrangeira e premiada de trânsito em que se aperta um botão e a realidade volta para tentar corrigir e fazer diferente.
A legião de destroçados já está formada e aumentando a cada dia. O que falta é cair a ficha para o tamanho do grave problema social e de conduta. Na vida e no trânsito. Nesse ponto, talvez as campanhas necessárias não sejam só pelo respeito às leis de trânsito, mas para se resgatar a humanidade perdida em alguma dobra das pessoas.
Márcia Pontes
Especialista em Trânsito
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