Quando as vítimas sequeladas viram réus no tribunal das redes sociais
Por Marcia Pontes, colunista do Notícias Vale do Itajaí
Realmente, eu não sei o que é pior: estar na condição de uma vítima sequelada de acidente de trânsito gravíssimo provocado por condutor alcoolizado em alta velocidade, sentir as dores insuportáveis daquelas que nem morfina não dá jeito ou ser julgado e sentenciado pelo tribunal de ignorantes leigos das redes sociais, que não é o júri popular que se espera. Bastou sair a notícia de que hoje (04/06) teria audiência conciliatória na esfera cível sobre o caso de uma das vítimas do Jaguar para que aparecessem comentários dos mais sem noção impossível: R$ 700 mil é demais, a família da vítima e a própria vítima sequelada está se aproveitando para obter enriquecimento ilícito, e por aí vai. Embrulha o estômago só de ler e quem comenta não tem vergonha de deixar o seu belo sorriso de perfil ao lado das bobagens que escreve para que o atestado de ignorância e de falta de humanidade seja bem passado publicamente. Mas, antes de explicar como a própria Justiça estabelece os parâmetros para os cálculos de indenizações por danos morais e estéticos faço um convite à reflexão para que cada um visite o endereço mais difícil de encontrar: o lugar do outro.
Sinceramente, eu não desejo a ninguém que tenha de passar pelo mesmo sofrimento que passa uma vítima de acidente de trânsito e os seus familiares para compreender e sentir na pele o quanto a sua vida muda. Mas, infelizmente, parece existir pessoas que só entenderão quando estiverem, literalmente, no lugar do outro, com as múltiplas fraturas não consolidadas do outro, somente quando sentir as dores que ela sente. Somente quando não puder dormir à noite e não deixar ninguém na casa dormir porque as dores são tão fortes que você grita e chora. R$ 700 mil não é recompensa por tanto sofrimento.
As pessoas não deveriam esperar que acontecesse com elas ou com alguém de sua família, com o pai, a mãe, a esposa, um irmão, um filho, somente quando tivesse ossos quebrados cujas fraturas ainda não consolidaram; ou ter que que passar anos em tratamentos demorados e dolorosos, ou quando tiver que cuidar de alguém que ama nessas situações para compreender o quanto dói a dor do outro.
Os olhos de muitos costumam crescer diante de cifras, mas sem compreender como se chegou à elas, seja pelo esforço e pelo trabalho duro de uma vida inteira, seja pelas bases de cálculos e parâmetros regulados pela própria justiça para tentar reparar o que, na verdade, é irreparável.
Como se calculam as indenizações
Em caso de acidente de trânsito com gravidade e em que haja vítimas mortas e sequeladas existem dois tipos de danos a serem reparados judicialmente: os danos estéticos para os sobreviventes sequelados e os danos morais. Para se calcular o valor dos danos estéticos a vítima reúne todos os comprovantes, recibos, laudos médicos, resultados de exames, provas das cirurgias feitas e declarações dos médicos sobre as próximas cirurgias que terá de fazer, medicações que toma e tudo o mais que possa ser juntado como prova a ser apresentada à justiça. Para os procedimentos seguintes que serão necessários os médicos apresentam a descrição detalhada de cada procedimento e os valores do dia para cada um. Isso tudo é juntado aos autos do processo e encaminhado ao juiz.
A Maria Eduarda, sobrevivente sequelada da colisão com o Jaguar cujo condutor estava alcoolizado conforme teste de etilômetro e dirigia acima da velocidade permitida em uma via em obras conforme demonstra o laudo pericial oficial do IGP além de outras provas robustas dentro do processo, ainda não saiu da cadeira de rodas. Tem múltiplas fraturas conforme documentos oficiais anexados aos autos, já fez várias cirurgias, teve a bexiga e o rim perfurados em decorrência do impacto da colisão. Há ossos cujas fraturas não se consolidaram e que não suportaram a colocação de pinos.
A Maria Eduarda sofre dia e noite com dores insuportáveis que nem a morfina consegue amenizar; noites em claro para todos na casa porque ela não tem hora para gritar de dor. A Maria Eduarda não pode mais trabalhar e ajudar no sustento da casa como sempre fez; a mãe da Maria Eduarda teve de largar o emprego, que é o sustento da família, para cuidar da filha: dar banho, alimentar, fazer curativos, acompanhar nas consultas médicas, e basta colocar-se no lugar delas por apenas poucos minutos ou o quanto aguentar para ter ideia das dificuldades por que passam.
A própria literatura científica demonstra que as vítimas e os cuidadores de pessoas sequeladas, inclusive em acidente de trânsito, costumam desenvolver depressão e outros comprometimentos psicoemocionais que colocam as suas vidas de ponta cabeça. As sequelas de acidentes de trânsito são sentidas e vivenciadas por todos, toda a família, os amigos e quem está em volta também sente, também se sacrifica, também adoece junto.
Quanto ao dano moral, existe o entendimento na própria doutrina, na legislação e na jurisprudência dos tribunais superiores de que deve atender uma dupla função: reparar o dano para minimizar a dor da vítima e punir o ofensor, para que o fato não se repita. O pedido é feito pelos advogados, mas quem julga são os juízes para que a quantia pleiteada não seja tanto irrisória quanto exagerada.
Tanto para os casos de sequelas graves ou morte a lei leva em conta a estimativa de vida dessa pessoa, o quanto ela recebia de salário à época da ocorrência; no caso dos sequelados, qual é a severidade das sequelas e quais são, se as lesões são permanentes, se levarão à invalidez, se essa pessoa passará o resto da vida fazendo outras cirurgias, se continuará passando por tratamentos dolorosos e demorados e o quanto isso afetará a sua capacidade de realizar tarefas da vida diária e comprometerá o próprio sustento, se essa pessoa erra arrimo de família ou não.
No caso das mortes, todo mundo sabe que nada trará a vida das pessoas que se foram de volta e que nem a vida de seus familiares jamais será a mesma, mas o valor pecuniário, o dinheiro, a indenização, servirá para mitigar o sofrimento de quem ficou e é uma forma de punir o acusado de acordo com as suas posses como diz a própria lei. Basicamente, calculam-se a extensão dos danos, o tempo de vida estimado que a pessoa teria, a renda mensal que ela tinha e multiplica-se: é por isso que as indenizações costumam ser vistas como um valor alto pelos leigos ou para quem só olha para as cifras.
Por que o meu caso está demorando anos para julgar?
Dentre os comentários pelas redes sociais estão aparecendo os de muitas vítimas de acidentes de trânsito questionando porque o caso delas está parado faz anos na justiça enquanto o caso de Evanio Prestini está andando tão rápido. Isso tem uma explicação em diversos fatores e o primeiro deles é porque Evanio Prestini é réu preso e com réu preso a própria justiça determina que o caso ande mais rápido. A partir do momento em que Prestini for solto para responder ao processo em liberdade levará anos até que seja julgado e sentenciado.
O fato de o processo levar anos para julgar pode depender também das leis da época em que houve a colisão, o que prevalecia. Lembrando que desde de 2017 houve mudanças significativas na legislação e uma delas é que em caso de acidentes de trânsito envolvendo condutor alcoolizado não é mais o delegado que arbitra a fiança e sim o juiz de Direito em audiência de custódia. Também aumentou a pena de 5 para 8 anos de reclusão (regime fechado) em caso de morte e de 2 a 5 anos de reclusão em caso de lesões corporais gravíssimas como as da Maria Eduarda.
Mas, tem um outro fator importante que os advogados de defesa costumam ao mesmo tempo negar e combater porque sabem o quanto pesa: a comoção geral, a pressão popular, as faixas, os cartazes, os pedidos de justiça, o quanto as vítimas e as famílias das vítimas se expõem e expõem o próprio sofrimento. Isso conta sim, mas muitas vítimas sentem-se fragilizadas demais, envergonhadas demais, estão sensíveis e doloridas demais ao ponto de se sentirem humilhadas perante a sociedade.
Há casos, inclusive, em que a própria vítima ou familiares mais próximos dela proíbem outras pessoas da família como os próprios pais de se manifestarem, de pedirem publicamente por justiça, de fazerem manifestações e movimentos como estão sendo feitos no caso do Jaguar. Dependendo do que a imprensa noticia e de como noticia, as próprias vítimas que juntam ao processo as reportagens do caso em sua defesa ameaçam processar os jornalistas. É por isso que o caso delas não toma a proporção que tomou o caso do Jaguar.
Caso Jaguar: emblemático e derruba paradigmas
Aliás, esse caso se tornou tão emblemático que está derrubando paradigmas que eram sustentados até o dia 23 de fevereiro quando prevalecia o discurso de que “o cara só tá preso porque é pobre, se fosse rico tava solto.” Só que Evanio Prestini é rico e está preso até o momento da publicação desse artigo. Outro discurso que caiu por terra com o caso do Jaguar: “quem pode pagar advogados caros não vai preso”, e olha quantos advogados caros e famosos o Evanio Prestini tem e quantos pedidos de habeas corpus foram negados!
Até no meio jurídico o que muito se ouviu no começo era que “já era prá esse cara estar solto faz tempo!”, mas quando se começa a analisar letra por letra dessa ação penal se constata que apesar de todas as brechas existentes o dolo eventual não está morto. E não está morto por conta dos agravantes e qualificadoras em razão da conduta do motorista e de todas as provas periciais oficiais, testemunhas e vídeos que também testemunham o caso.
O fato é que Evanio Prestini está preso não é porque é rico ou é pobre, porque dirigia o Jaguar importado do pai dele ou carro de menor valor, ou porque a família tem muito dinheiro prá gastar na contratação de advogados famosos que já defenderam Fernando Collor, o bicheiro Carlinhos Cachoeira, Renan Calheiros ou o ex-deputado Carli Filho. Evanio Prestini não está preso porque a família não podia ou pôde contratar dois peritos e um deles foi o que participou da comissão que analisou anos depois a morte do presidente Juscelino Kubitschek.
Evanio Prestini continua preso por conta da gravidade dos resultados de seus atos ao volante em via pública e que lhe são imputados enquanto réu, e porque magistrados e desembargadores que apreciaram os seus constantes pedidos de soltura entenderam, com base na lei, que ele não deve responder ao processo em liberdade. Só por isso, e as justificativas de cada um deles estão no devido processo legal em andamento. É o que se tem de oficial e o que tem mantido o réu preso.
O caso do Jaguar é emblemático, quebra paradigmas e nem eu e nem qualquer outro gostaria de figurar nele como parte, como familiar, seja como réu e principalmente como vítima morta ou sequelada. Não existe cifra indenizatória nenhuma que pague esses danos e sequelas para a vida toda. Mesmo que, fantasiosamente, Evanio Prestini não fosse obrigado a pagar indenização alguma, tanto ele quanto a família dele jamais serão os mesmos, pois as marcas deixam vincos e cicatrizes profundas. Até os momentos de alegria serão diferentes para todos daqui para a frente.
Ou alguém que cresceu o olho nas cifras calculadas em cima de valores de cirurgias e de caixões gostaria de estar no lugar da vítima sequelada ou das mortas por R$ 700 mil? Se sentiria rico, abastado, com a “vida ganha”? Não deveria ser assim. Deveria haver mais humanidade, mais empatia, mais “colocar-se no lugar do outro” porque quando a dor do outro não te afeta, não te sensibiliza e não te diz nada além de cifras a sua doença é maior, mais grave e mais sequelante do que a dor e o luto eterno do outro.
Talvez, muitos desses que só olham para as cifras e passam vergonha em público sapateando em cima da dor e do sofrimento das vítimas e de suas famílias precisassem até nascer de novo, com mais humanidade, com mais sensibilidade, com mais inteligência e com mais empatia para se colocar no lugar da vítima politraumatizada que grita de dor mesmo com morfina, que tem fraturas que ainda não consolidaram, que não sabe quanto tempo ficará em uma cadeira de rodas esperando por uma cura que não sabe se vem e que poderia vir mais depressa com a outra parte reparando os danos decorrentes de sua conduta.
Sinceramente, eu espero que a ficha caia a tempo para quem tripudia em cima da dor das vítimas e de suas famílias. Mas, que essa ficha caia tão a tempo que elas não precisem passar pela mesma situação para se tornarem mais sensatas, sensíveis e humanas. Das duas uma: ou a sociedade vítima de motoristas que dirigem embriagados está sofrendo de Síndrome de Estocolmo ou ao invés de um coração o som da batida é de moedas tilintando. Dá até medo de perguntar se elas trocariam a própria incolumidade e a própria saúde por uma vida com sequelas permanentes e tratamentos longos e dolorosos por R$ 700 mil. Sentiriam-se ricas em $$ e com a vida ganha?
Márcia Pontes
Especialista em Trânsito
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