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Um dia para lembrar o quanto os esquecemos

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), todo ano morrem cerca de 1,25 milhão de pessoas em acidentes de trânsito no mundo. O número de feridos varia entre 30 e 50 milhões de pessoas. Brasil, China e Índia respondem por 40% das mortes globais de acidentes devido ao tamanho da população e à taxa de motorização. Se de um lado motoristas falham em suas responsabilidades, do outro autoridades agem da forma correta? Quais as recomendações? Confira o artigo da colunista Márcia Pontes desta terça-feira (14) no Notícias Vale do Itajaí:

 

Estou falando do Dia Mundial em Memória das Vítimas do Trânsito e suas famílias, reconhecido pela ONU em 2005 para lembrar dos mortos em acidentes de trânsito em todo o mundo a cada terceiro domingo de novembro. Neste dia 19 de novembro,  em todo o mundo haverá manifestações, missas, cultos e outras celebrações religiosas. Há programações de vigílias, caminhadas, desfiles e até shows com bandas. Mas, infelizmente, as vítimas de acidentes de trânsito no Brasil só são lembradas em 3 datas comemorativas: Maio Amarelo, Semana Nacional do Trânsito e Dia Mundial em Memória aos mortos nas vias. No restante do ano só a família lembra todos os dias. A Justiça não lembra, quem matou no trânsito não lembra, a própria sociedade e os governantes, a quem cabem planejar e executar políticas públicas, não lembram. Nem das vítimas e nem das palavras pomposas do último discurso que sempre repete ao final: “Estamos no caminho certo.”

A dor da perda de um filho, de um pai, uma mãe, de um amigo querido em acidente de trânsito é algo que não se pode medir: nunca passa, apenas nos adaptamos para conviver com ela tentando não perder as esperanças na justiça que nunca chega. Fico pensando se não seria um dia para lembrar do quanto os que perderam suas vidas, os sobreviventes e suas famílias são esquecidos durante o restante do ano. Afinal, depois que a notícia do acidente é esquecida eles também caem no esquecimento, mas a dor é diuturna: processos judiciais lentos que voltam para o fim de pilhas intermináveis, familiares que nunca recebem respostas, gente que morre acreditando e esperando por uma justiça que nunca vem.

Não raro, familiares de vítimas esbarram pelas ruas, em algum momento, com o motorista que estava embriagado e assassinou o filho, o pai, a mãe, o marido, a esposa de alguém. Estão amparados pelas leis frouxas, na justiça que caminha a passos de lesma, na omissão de governos, prefeituras, gestores de trânsito e nos que querem capitalizar politicamente.  

Quem mata no trânsito ou contribui para deixar mais de meio milhão de sequelados por ano no Brasil é amparado pela impunidade e parece esquecer rápido que tirou a vida de alguém que ia para o trabalho, para a escola, voltando do mercado ou que simplesmente teve a sua vida interrompida porque a única coisa que fez de errado foi cruzar o caminho de quem mata sobre rodas. Com certeza, o sorriso largo de quem mata e fere no trânsito é bem diferente do sorriso das vítimas e de seus familiares.

Estes, por sua vez, seguirão pela vida órfãos de seus queridos assassinados no trânsito e serão lembrados com a mesma memória dos políticos que uma vez a cada 4 anos dão tapinha nas costas dos eleitores. Com a diferença de que nessas datas comemorativas ligadas ao trânsito  geralmente são convidados a participar de missas, cultos, de outras celebrações religiosas, desfiles e reportagens. No restante do ano são relegados ao anonimato novamente.

A própria ONU recomenda e orienta que as ações realizadas não sejam isoladas, que haja planejamento, avaliação e suporte estrutural às vítimas e seus familiares ao longo de todo o ano para que não sejam lembrados somente em datas específicas. Recomenda que aja políticas públicas sérias, executáveis e sustentáveis para que outros não percam suas vidas em via pública. Mas, todo ano o protocolo se repete.

Se você, assim como eu, é familiar de vítimas de acidentes de trânsito e também perdeu pessoas que ama e amigos em tragédias que poderiam ser evitadas, sabe do que estou falando e do quanto somos esquecidos. Sabe das dificuldades que passamos, sabe que nunca mais os veremos e o quanto dói de tanto medir a distância, saber que não vamos mais tocá-los além da lembrança viva que trazemos em nossos corações. É tudo o que temos. 

Sabe que muitos de nós adoecemos e o quanto perdemos o sono, o quanto andamos pela casa vagando nas madrugadas, achando que de repente aquele que nos foi roubado por um motorista embriagado, imprudente, negligente e irresponsável vai entrar pela sala com o mesmo sorrisão de sempre.

Só quem perdeu alguém no trânsito sabe como é lembrar de cada data importante: cada aniversário, cada dia de Natal, de Ano Novo, de cada Dia das Mães, dos Pais, das Crianças, dos Avós e o quanto não se mede a falta que eles fazem. Sabe como é conviver com o vazio dos abraços apertados e dos beijos carinhosos que nunca mais daremos, dos almoços de domingo e do lugar vazio à mesa. Sabe como é lembrar da cor, da música e da comida preferida deles; das frases que eles sempre diziam ou do violão que tocavam tão bem. Sabe que tem horas que a gente quer arrancar o quarto deles da parte da casa ou passar horas vendo as fotos de criança ou da última vez que estivemos juntos.

Só quem é vítima ou familiar de acidentado de trânsito sabe como é querer evitar passar na rua do acidente, na frente do hospital e como é aquela pontada no peito quando vemos um carro parecido com aquele que o motorista desgovernou e tirou a vida de quem mais amamos.

Só quem viveu cada minuto dessa dor sabe o que é sonhar com o telefone tocando na madrugada e acordar de sobressalto no mesmo horário do acidente ou da morte. E sabe também o quanto tudo isso é diferente daquilo que os psicólogos chamam de luto não realizado.

Enquanto eles nos esquecem pela impunidade, pela omissão, pelos processos judiciais que se arrastam por longos anos, não raro, muitos de nós têm de suportar ficar frente a frente com quem matou os nossos queridos no trânsito, ouvi-los mentir descaradamente e até vê-los sair da sala de audiência sorrindo.  

Assim como eu, você sabe o quanto é difícil aceitar que eles beberam, eles dirigiram, eles assumiram o risco de matar, eles mataram e estão soltos, dirigindo novamente, bebendo novamente e colocando outras vidas inocentes em risco. Sabe o quanto dói ter a vida de quem mais amamos trocada por pacotes de arroz, feijão e outros itens de cestas básicas.

Enquanto a justiça nos esquece e a sociedade só nos lembra nas datas comemorativas, muitos de nós nunca apagaram aquela última mensagem que ficou no celular, na secretária eletrônica, só para ouvir de novo a voz, o sorriso e o “eu te amo” de quem nunca mais vai voltar.

Nós, as vítimas, os sobreviventes de acidentes de trânsito, nossas famílias e amigos, agradeceram os abraços, as flores que nos são ofertadas e por ser sermos lembrados nessas datas comemorativas. E isso é importante! Mas, por favor, lembrem com respeito da nossa dor e da memória de quem nos foi tirado à força. Lembrem com senso e sede de justiça da injustiça que sofremos e da impunidade que só penaliza as vítimas e as famílias, também nos outros dias do ano.

 

O tema deste ano

O Dia Mundial em Memória às Vítimas do Trânsito é temático e o tema deste ano é: reduzir mortes e sequelas graves em 50%, seguida do slogan “Vamos fazer de 2011-2020 uma década para lembrar.”  Falar nisso, lembram do vídeo de 1 minuto que foi veiculado aos motoristas na inauguração do memorial no terceiro domingo de novembro no ano passado? Ao ser questionado sobre o número aceitável de mortos em acidentes de trânsito um homem responde que são 70 pessoas e então entram 70 pessoas da família dele. Ao final do vídeo o homem chora, repensa, afirma que nenhuma morte é aceitável e as pessoas se emocionam. O vídeo rodou todas as reportagens na imprensa neste dia.

 

Nenhuma morte no trânsito é aceitável, mas, para a ONU o número aceitável é 50% em todo o mundo. Será que deveríamos trazer 50% da família de cada conselheiro das Nações Unidas  para ver se eles se emocionam, refletem e revisam essa meta para “nenhuma morte é aceitável”?  E assim seguimos comemorando caso se consiga carregar 50% a menos de caixões de vítimas do trânsito, porque esse é o número aceitável. 

Por ano, no mundo, são mais de 1,3 milhões de mortes em acidentes e um batalhão que beira mais de 50 milhões de feridos; e se nada for feito pelos governos e cidadãos mundiais a previsão é de que esse número suba para 1,9 milhões de pessoas em 2020 e 2,4 milhões em 2030. No Brasil são 50 mil pessoas que morrem a cada ano vítimas de acidentes de trânsito e mais de meio milhão sobrevivem sequeladas.

 

Programação em Blumenau

Em Blumenau será feita uma celebração no Memorial às Vítimas de Acidentes de Trânsito inaugurado ano passado no posto da PRF, km 53 da BR-470, com início às 10h. Toda a comunidade, vítimas de acidentes de trânsito, seus familiares e amigos estão convidados. Após uma celebração breve serão entregues adesivos com a oração inscrita na lápide do Memorial à todos os presentes e motoristas.

É uma data mundial, é importante lembrar deles e de suas famílias com respeito para resgatar a humanidade perdida e os valores, muitas vezes, esquecidos. Mas, não podemos ficar só no simbolismo das datas comemorativas. Precisamos lembrar deles e atender as suas demandas por justiça durante os 365 dias do ano.  

 

Márcia Pontes
Especialista em Trânsito

Representante do Maio Amarelo em Santa Catarina

 

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